quarta-feira, 17 de março de 2010

TRANSFIGURAÇÃO

Caminhando para o trabalho, assisti a uma cena banalíssima: um garoto, com um objeto qualquer nas mãos, simulava-se como atirador e mirava um alvo imaginário. A mãe seguia na frente e ele atrás. Fiquei pensando e prossegui assim meus passos pelo início da manhã (6h).

É curioso esse comportamento humano de todas as idades: transcender-se ou "encarnar-se" em outro. Das brincadeiras infantis quando o menino se vê (e se faz) como homem- aranha e a menina como Barbie ou uma princesa qualquer às formas mais sofisticadas e supremas das artes teatral e cinematográfica. O envolvimento do ouvinte, do leitor ou espectador também faz parte desse quadro. Que necessidade será essa? Serve a quê?

Alguns animais (penso em cachorro) simulam atos agressivos por pura brincadeira. Fingem morder. Chego a pensar que toda brincadeira animal é também simulação, ser um outro; estar numa situação hipotética, virtual.

No homem, vejo dois modos básicos: criar um outro para, nele, projetar-se, "encarnar" ou criar um outro para interação ou interlocução íntimas (mental ou espiritual, como se queira) - aqui incluo todas as religiões. No primeiro modo, penso em personagem nas mais diferentes formas de arte e, por certo, nas brincadeiras infantis.

Tomando a palavra outro com amplo espectro de sentidos, a ação de criar paisagens imaginárias (ou mesmo representá-las por meios gráficos ou pictóricos) poderia muito bem ser incluída num dos dois modos mencionados. Serve à mesma misteriosa necessidade. No limite, entre outras coisas, o homem não passa de um mamífero criador de símiles. E a música? Bem, esta nasceu quando aprendemos a imitar os passarinhos.

Então elucubro: não seria a consciência tal como a conhecemos um fenômeno recente no processo evolutivo da espécie? De forma que, ainda não plenamente adaptados a essa condição, nos sentimos prisioneiros de um casulo egótico (Epa!). Daí a necessidade de expandi-la (alucinógenos!), de transcendência (religião), de transfiguração(artes). Vai saber!

Gostoso mesmo é ficar assuntando.

2 comentários:

Neto disse...

Já leu "homo ludens" do Johan Huizinga? A editora perspectiva edita e publica. Depois desse seu "post", caso não tenha lido, virou leitura obrigatória.

Antônio Rebouças Falcão disse...

Caro Neto:
Obrigado pela atenção. Quanto às suas sugestões de leitura, tenho a dizer-lhe que já estou pelos sessenta anos e muita leitura. Verdadeira obsessão. Conheço Homo Ludens e o texto de Umberto Eco. São excelentes. Neste ponto, nos afinamos. Grande abraço.
Falcão