quarta-feira, 13 de outubro de 2010

A PATOLOGIA DA OBSESSÃO

Todas as obsessões mantêm um traço comum: nascem de um vazio que busca preencher-se.

A substância que elimina esse "buraco" tem natureza e origem simplificadas. É meramente funcional. O sucesso da empreitada é que são elas. O terreno cede com o tempo e é preciso socá-lo e acrescentar mais. É interminável, mas, por algum rolar de tempo, dá a impressão que cumpriu o propósito.

Essa impressão produz o alarde de sucesso. A coisa se espalha e alimenta adesões. Todos os humanos vazios (todos nós afinal) que aderem passam a adotar os procedimentos infindáveis.

Para "buracos" diferentes, substâncias diferentes. Proliferam-se dietas variadas, seitas plurais; às vezes, conflitantes. Está armada a confusão, que é proverbial na história humana.

Conviver com o vazio e conformar-se com sua impossível superação - ou simplesmente ignorá-lo - pode ser perigoso. Quem o faz passa a ser visto como um cisne azul. Um sem-lugar. Um "buraco" inoportuno. Deve ser preenchido ou eliminado.

Um filósofo austríaco, Karl Popper, em A sociedade aberta e seus inimigos, já alertava: “Se não estivermos preparados para defendermos uma sociedade tolerante contra o ataque da intolerante, então a tolerante será destruída, e com ela a tolerância”. Faça a analogia.

Proselitismo e conversão armam-se para a tarefa. A tal caça a fiéis novatos. Seguem procedimentos de iniciação; batismo ou trote, por exemplo. Salvar as almas perdidas; engordar a nossa tribo. Dá no mesmo. Na retaguarda, a eliminação está a postos. Note: eliminar aqui tem como objeto não o vazio, mas seu detentor.

Os "buracos"? Estes vão continuar sempre aqui, aí, ali e acolá. Ração de obsessivos e condição inescapável para os céticos.

Assim é o torcedor ou religioso fanático; o glutão, o drogado, o consumidor conspícuo, o torturado de paixão, o antitabagista feroz, o homofóbico etc. A maioria sempre enturmada, em grupo. Esta praga. No caso do primeiro, o embate esportivo lhe serve como simulacro de uma vida plena de emoções e sentido (por algumas horas), que não existem em seu cotidiano, regado à bruta repetição e alienação. Há de viver socando o "buraco" que sempre cede. "Bateu? Levou!", "Levar vantagem em todas", "Meu pirão primeiro", o outro é o otário.

O fanático religioso apega-se com unhas e dentes (ressentimento e inveja) a um conjunto de idéias preexistentes que ordena o mundo e vida. Dá-lhe coerência. Forma-se o sentido. "Viver pra quê? Ah, já sei. Estou feliz e apaziguado agora". Tem a convicção de que livrou-se de um medo ancestral - incapaz que é de explicar o sentido das coisas do mundo ou resignar-se com sua ausência e mistérios. Por isso esse esparramado de cooptações e adesões a um edifício que lhe é dado pronto. A religião, o time do coração, minha amada, idolatrada... Por isso também as demarcações maniqueístas de contornos acentuados: deus e o diabo, o bem e o mal, o certo e o errado, a culpa e o perdão, por aí vai. Essas demarcações controlam corpo e consciência.

Num mundo agora preto e branco, ele está a salvo. Os diferentes matizes de cinzas, as nuances e diferenças o confundem, desestabilizam-no, atrapalham. Entretanto, não se encontrou, apenas vive pendurado num comboio de conceitos e valores que o mantém em constante autoilusão. "Buraco" vazio, "buraco" cheio; nesta marcha inexorável até a morte.

Ocorre o mesmo com o dependente químico (oh, expressão boba! Qualquer ser vivo é dependente químico - ele não existe no vácuo). Muitos agem assim: agarram-se obsessivamente, não poderia ser diferente, a um determinado culto religioso (aqui, há uma troca de objeto da obsessão). Deixa de ser usuário de uma espécie de substância e passa a ser usuário de qualquer seita que o conforte. E segue doente, uma vez que não atingiu o âmago de seus problemas - o vazio que o aflige.

Julgando ter controlado a si mesmo, passa, então, a controlar o que está a sua volta. Como missão, lhe cabe oferecer ao outro o "bem" que lhe foi oferecido. A vida passa a ser vista como uma guerra santa em que ele figura como o vencedor, o justiceiro, porta-voz do supremo juiz.

O desdobramento disso é a formação de manadas (torcidas organizadas, talebans, alcoólicos anônimos, Opus Dei, católicos carismáticos, clube de fãs, grupos de controle de peso, partidos políticos etc.) convencidas de possuírem a graça da verdade revelada. Aí, vestem a farda e tornam-se militantes. Os torturados de paixão, recentemente e com muita frequência, têm matado o objeto de sua paixão (inconformado com a perda) e, em seguida, se matam. Cuidado! Estes são muito perigosos, agem sozinhos. Mas são pano grosso para minha agulha.

Ao ver as manadas por aí, algo muito fácil, você tem quatro alternativas: aderir; atravessar a rua; sumir do mapa ou tornar-se invisível. A comida está na mesa, sirva-se à vontade.

Como antes me servi de Popper, pensador liberal, concluo servindo-me de outro; agora, um letão que se fez inglês, Isaiah Berlin: “Poucas coisas têm sido mais prejudiciais que a crença por parte de indivíduos ou grupos (ou tribos ou Estados ou nações ou igrejas) em que ele, ela ou eles detêm a posse isolada da verdade.

Especialmente em relação a como viver, o que ser e fazer – e de que aqueles que divergem deles não apenas estão equivocados como são maus ou loucos e precisam ser freados ou suprimidos.

É uma arrogância terrível e perigosa acreditar que você, e você apenas, tem razão; que possui um olho mágico que enxerga a verdade e que outras pessoas não podem estar certas se discordam disso”.

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