LEITURAS DE FÉRIAS
a Izolda
Sobre a vida humana não ter sentido algum, muito se disse. Tanto quanto, sobre a mão pesada do acaso, na urdidura do tecido que ora repousa no balcão do destino. Ao nos debruçarmos sobre a vida de um indivíduo que já sabemos morto, de existência ficcional ou empírica, o que logo fazemos é, no tecido de sua vida, separar os fios do acaso daqueles construídos pelas relações de causalidade e consequência. Aqui, obra humana da racionalidade; ali, atributo divino, condensado na expressão banal: está nas mãos de deus, ou, de outro modo, esteve nas mãos de deus. Fora, portanto, de nossos domínios.
A vida, num romance, é apresentada de tal forma que o leitor se apercebe de que há algo além do acaso; o que imprime traços de um sentido que, na existência empírica, lhe escapa. Quantas pessoas não se sentem tentadas, diante da morte acidental de um indivíduo de suas relações, a pronunciar o clichê: ... mas ele procurou? Está aí esboçado o desenho de um sentido que lhes convém admitir intimamente diante do desconforto produzido pelo súbito vazio que a morte estúpida lhes impôs. Mas também, na morte lenta que se insinua no vazio das horas que se esvaem dolorosamente.
Para si ou para outrem, a vida comentada ou analisada tem com fantasma a vida narrada, pela voz ou pela escrita. Em ambos os casos, a busca é busca de uma razão confortante em que camadas de causalidades e consequencias se acumulam com o fito de resolvermos o peso do luto insanável. No tecido desfeito da existência examinada, é preciso que os fios do acaso sejam convenientemente ocultados para a visibilidade dos fio da causalidade. Se a narrativa ficcional nos mostrasse um panorama diverso, que acomodação restaria ao leitor, que tem, na fruição do romance, seu melhor travesseiro? Nesse campo, a literatura moderna, de Joyce a Kafka, engendrou um deserto, não um bosque, nem mesmo uma pradaria. Não por acaso, os livros de ficção, hoje, mais vendidos são aqueles que abraçam as narrativas mais convencionais, os alívios mais vulgares. O homem contemporâneo é uma figura triste.
Neste julho, enquanto me dou ao enfado de ler um romance ruim (As Memórias do Livro, de Geraldine Brooks), releio também o célebre texto de Walter Benjamin, O Narrador. Aquele me levou a este. Aqui, W.B. cita Lukács, em seu também célebre Teoria do Romance, onde está escrito: ... Somente o romance ... separa o sentido e a vida, e, portanto, o essencial e o temporal, podemos quase dizer que toda a ação interna do romance não é senão a luta contra o poder do tempo ... Desse combate ... emergem as experiências temporais autenticamente épicas: a esperança e a reminiscência ... Somente no romance ... ocorre uma reminiscência criadora, que atinge seu objeto e o transforma ... O sujeito só pode ultrapassar o dualismo da interioridade e da exterioridade quando percebe a unidade de toda sua vida ... na corrente vital do seu passado, resumida na reminiscência ... A visão capaz de perceber essa unidade é a apreensão divinatória e intuitiva do sentido da vida, inatingido e, portanto, inexprimível.
Eu me pergunto: o que faz um romance senão simular essa unidade? Pensar o sentido da vida como algo apreensível é uma tolice demasiadamente humana, porque ele não passa de uma promessa para sempre não-cumprida. Assim mesmo: funda-se e fixa-se nisso. No tempo de uma leitura, o leitor conforta-se com uma ilusão, que parece lhe bastar - não vejo por que W. Benjamin separa a narrativa (oral) do romance (escrita). Por estes dois procedimentos, leitor e ouvinte se alimentam do mesmo: o inefável que, momentaneamente, se cristaliza; para, logo depois, evaporar-se no árido da existência empírica, real. Chega também a separar o leitor de romance (ainda segundo ele, solitário por excelência) do leitor de poesia (não-solitário, que ainda teria o recurso da declamação). Volto a perguntar: quer coisa mais comum que um leitor de romance desejar nos contar o livro recém-lido? Ora, não posso entender, não posso concordar. Sei: entendimentos são impedimentos - geram prisioneiros de convicções. Melhor teria sido calar-se e não ouvir (ou vice-versa). No fim, acaba tudo bem.
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