MEIA DÚZIA DE UM JOGO
1. O ás que desponta entre os dedos grita como modo de outorgar-se sequência. Desdobrar-se-á diferente e único. Nenhuma das outras cartas fala ou pede agora; elas outras estão mergulhadas em seu tédio de qualquer, de comum. E eu não gosto de jogar, de acompanhar as armações aleatórias, os ajuntamentos, as somas. Jogar, a mim, é enfadonho. Não surpreende.
Se, para alguns, o jogo guarda analogia com a vida, eu o vejo como um ledo engano de percepção. Um clichê. Por aleatório que seja, perdemo-nos é no montar sequências: trabalhos, amizades, família e textos. Nascemos e morremos sós. Que bobagem é essa?! Os ases é que nos lembram únicos.
2. Chove lá fora. E, depois de uma certa idade, germinamos reminiscências. Organizamos aquilo tudo em narrativas que nos enchem de prazer, se acompanhados. Trocas de lembranças. Na verdade, trocas de organizações temporais e, nestas, o prazer de refazê-las como jogos armados. O tempo, uma medida para o movimento estúpido da existência; nas lembranças, é medida de um jogo entre o caroço e a polpa, no grosso do abacate mesmo. Eu me lembro, narro e sou maduro, e sou íntegro, sempre na prisão do fruto. Mera aparência.
3. Chove lá fora. Muito tarde, brigar por motivos fúteis é alerta: desvencilhar-se de ramos, ou de braços, que nos querem juntos e afogados. É o que há a fazer: atravessar silenciosamente a floresta e descansar o cadáver. Alisar as cartas sem rever o jogo. Se viver parecesse com cartas embaralhadas a armar destinos, o que seria a bruta noção da insignificância e fragilidade? Ter apostado a alma e perdê-la? Nem sequer tocamos a música das sibilas. Que bobagem é essa?!
4. Chove lá fora. E todas as ações, como lances, alçam-nos para o vácuo, entre o caroço e o fruto. Sacudimo-nos o tempo todo. A árvore nos amadurece e a terra nos apodrece. Somos a insignificância de um entre muitos e a possibilidade do um contra muitos: as outras árvores, os outros frutos. O novo baralho, refeito no entrelaçar-se renovado das mesmas cartas. O mesmo destino da mesma árvore, no mesmo quintal, até que...
5. Chove lá fora. E chega de alegorias - um outro jogo. A palavra é uma arma pela qual e contra qual nos armamos. Conviver com ela nos prega a peça: como numa maré vazante, quanto mais a lançamos ao mar (prisioneira de uma garrafa ou ao vento) mais percebemos a inutilidade do pequeno frente ao grande. Simples: o que vai não volta e, se for, não será; na volta, o mesmo. A mesma palavra, da mesma garrafa, no mesmo mar. Até que... Não e não!
6. Chove lá fora. E eu direi que te amo e tu acabarás dizendo que me amas. Entre o caroço e a polpa, entre a água e a areia, uma coisa qualquer nos escapa e desaparecerá na grande noite, sem que nenhuma sorte ou ás estejam escorregando entre os mil dedos do medo de viver.
Embaralha as cartas e faze o jogo. E o jogo (ou o mar ou o texto) é o mesmo sempre: eu te amo e tu me amas.
12 de janeiro de 2002
1. O ás que desponta entre os dedos grita como modo de outorgar-se sequência. Desdobrar-se-á diferente e único. Nenhuma das outras cartas fala ou pede agora; elas outras estão mergulhadas em seu tédio de qualquer, de comum. E eu não gosto de jogar, de acompanhar as armações aleatórias, os ajuntamentos, as somas. Jogar, a mim, é enfadonho. Não surpreende.
Se, para alguns, o jogo guarda analogia com a vida, eu o vejo como um ledo engano de percepção. Um clichê. Por aleatório que seja, perdemo-nos é no montar sequências: trabalhos, amizades, família e textos. Nascemos e morremos sós. Que bobagem é essa?! Os ases é que nos lembram únicos.
2. Chove lá fora. E, depois de uma certa idade, germinamos reminiscências. Organizamos aquilo tudo em narrativas que nos enchem de prazer, se acompanhados. Trocas de lembranças. Na verdade, trocas de organizações temporais e, nestas, o prazer de refazê-las como jogos armados. O tempo, uma medida para o movimento estúpido da existência; nas lembranças, é medida de um jogo entre o caroço e a polpa, no grosso do abacate mesmo. Eu me lembro, narro e sou maduro, e sou íntegro, sempre na prisão do fruto. Mera aparência.
3. Chove lá fora. Muito tarde, brigar por motivos fúteis é alerta: desvencilhar-se de ramos, ou de braços, que nos querem juntos e afogados. É o que há a fazer: atravessar silenciosamente a floresta e descansar o cadáver. Alisar as cartas sem rever o jogo. Se viver parecesse com cartas embaralhadas a armar destinos, o que seria a bruta noção da insignificância e fragilidade? Ter apostado a alma e perdê-la? Nem sequer tocamos a música das sibilas. Que bobagem é essa?!
4. Chove lá fora. E todas as ações, como lances, alçam-nos para o vácuo, entre o caroço e o fruto. Sacudimo-nos o tempo todo. A árvore nos amadurece e a terra nos apodrece. Somos a insignificância de um entre muitos e a possibilidade do um contra muitos: as outras árvores, os outros frutos. O novo baralho, refeito no entrelaçar-se renovado das mesmas cartas. O mesmo destino da mesma árvore, no mesmo quintal, até que...
5. Chove lá fora. E chega de alegorias - um outro jogo. A palavra é uma arma pela qual e contra qual nos armamos. Conviver com ela nos prega a peça: como numa maré vazante, quanto mais a lançamos ao mar (prisioneira de uma garrafa ou ao vento) mais percebemos a inutilidade do pequeno frente ao grande. Simples: o que vai não volta e, se for, não será; na volta, o mesmo. A mesma palavra, da mesma garrafa, no mesmo mar. Até que... Não e não!
6. Chove lá fora. E eu direi que te amo e tu acabarás dizendo que me amas. Entre o caroço e a polpa, entre a água e a areia, uma coisa qualquer nos escapa e desaparecerá na grande noite, sem que nenhuma sorte ou ás estejam escorregando entre os mil dedos do medo de viver.
Embaralha as cartas e faze o jogo. E o jogo (ou o mar ou o texto) é o mesmo sempre: eu te amo e tu me amas.
12 de janeiro de 2002
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