terça-feira, 24 de julho de 2012

DO ODOR DAS COISAS ANTIGAS

ADEUS

Quando, ontem, me disseram que as asas se dobram ali e se quebram acolá, fiquei apreensivo. Preparo-me para a fuga permanentemente. Minhas asas, já cansadas pela idade, pouco me adestram. Mas pensei, pensei em nó frígio - o que é incontornável e intransponível: fugir para onde? A mais inconveniente das indagações, a que me põe diante de mim e do tempo, do inamovível. Fugir? Não. Desaparecer. As asas serão as folhas secas sobre que até as árvores desconversam. Livre, serei memória, móvel como todas, intangível. Um chocolate esquecido no assento, no vagão de um trem sem trilhos.

EQUIVALÊNCIA

Como pássaros que nos oferecem mel,
Pousados como frutas
Nos galhos das nuvens.
Um sopro de encanto
Na esquina das madrugadas mais sinistras
De nosso recolhimento,
De nossa rosca sem fim,
No intestino de nosso travesseiro,
De nossa dor mais insincera,
De nossa autoindulgência
Mais vil. Nossa mais humana condição.
Uma vergonha surrupiada pelo oblívio.

SE LHE APROUVER

Licenças concedidas. Visitas se fazendo. Jardim tomado por mato e galinhas. Varanda ampla e vazia. Casacos e guarda-chuvas no vestíbulo. O fatídico envelope nas mãos. Mármores sentados diante de um esqueleto mole. Assuntos gravíssimos a tratar. Dia claro. Tanta dor. Minha infância lá tão próxima. Café fraco e frio no fundo das porcelanas desbotadas. Círios acesos nos quatro cantos da mesa, na refeição bizarra de nosso fim. Uma vida nos dedos trêmulos. Pousam lá fora, próximos, pardais tagarelas sem convites. Ouvir aquilo com o desejo de também voar. E estar ali como chumbo. A vida que foi de todos e é de ninguém. Sentir por inércia, mais uma vez, que todos nós, uns antes outros depois, seremos apodrecidos. O sol repentino. A luz varando as cortinas puídas. Por dentro, a noite mais íntima. As unhas que não cortei e a barba que não fiz. Cabelinhos nas entranhas das ventas, nas narinas indesejáveis. Choveu muito quando não deveria chover sobre meus erros. Longe, ouço um grito feminino que chama por crianças que desapareceram na farra das poças. Folhas úmidas, em franco ócio, no piso de madeira gasta da entrada. A porta aberta me concede permissão para voos mágicos. Não tenho para onde correr nem como evitar. Vontade que não depositei nos olhos que não pedi que se abrissem. Cimento-me e disponho-me em prontidão para o horror das falas afiadas no silêncio de frios das facas.

DO INÚTIL EM DIZER E PENSAR

Pois encheram minha infância de balinhas metafísicas. Deram-me censura, honra e medo. Tornei-me um homem capenga. O que assim chamam. Olho plantinhas que nascem, de qualquer modo, nos vãos das pedras. Olho as águas esparramadas e os quebrados da calçada. Lamento a música e o desespero das noites. Não sou daqui nem daí. O que vejo então? Pessoas mordendo lábios lacônicos. Prefiro insetos e as aranhinhas que tecem teias físicas e me dizem: você não passa de um saco de tripas empatando nossos dias. Sigo, com cautela, meus passos que vão à frente.

Salvador, 24 de julho de 2012

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