quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

SEU JOSIAS (1924-2012) - UM OBITUÁRIO


Naquela casa com amplo quintal e farto pomar, um dia, percebeu que a raiz de quaisquer de suas poucas amarguras era o desejo, cujas bordas não perdia de vista: a insaciabilidade e a frustração - sua biruta particular.

Perseguia eliminar o desejo e só se deixava acompanhar pela restrita conveniência, pelo silêncio sábio da sombra e do sossego, e por um cigarro e uma cachacinha.

E os prazeres – “a glória de viver”? Apenas aqueles que já estavam a seu alcance, melhor ainda, aqueles que sempre estiveram e, até então, não via. Uma revelação tardia. Por exemplo, ver a pinha madura que se decompunha no prato. Ali, com a gostosa preguiça de não parti-la. “Sublime!”, dizia com seus olhos brilhantes.

Deixava pacientemente que, por baixo da porta e pelas frestas das janelas, entrasse única a falência das carnes, na companhia da luz natural que o guiava até seu sono incógnito. Detestava relógios e cortinas. Como em todas aquelas suas últimas manhãs e ao correr da vida, ele sabia que a morte é permanente e corriqueira. E pontuava sobre ela: "Esta que sabe seu momento; para nós, a qualquer hora - nunca saberemos. Se sempre a cercamos de solenidade, é porque nos envenena o tempo". Em tom bastante grave, é bom que se diga.

E não estava nem aí. Deixa muitas saudades e rara sabedoria. “Seu Josias, o sabiá [Quinho] ainda canta em todas as suas auroras” – palavras de Dona Noêmia, sua zelosa vizinha de todas as horas. Seus muitos amigos estão todos em paz, para alegria desse sublime jardineiro.



Antonio Rebouças Falcão - Salvador, 8 de janeiro de 2013

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