segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

UM COMENTÁRIO PASSAGEIRO




Em 2011, o Sr. Fernando Henrique Cardoso aparece em livro-entrevista, falando de si, do Brasil, do Mundo e das coisas [A Soma e o Resto, em depoimento a Miguel Darcy. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro]. Belo título.




Nesse meio de janeiro, 2013, o tenho nas mãos e nas férias baianas. Na página 89, me deparo com esta platitude: "É difícil se libertar do peso das ideias antigas... No mundo real, as práticas mudam, mas o discurso tem dificuldade de acompanhar a mudança. Fica defasado." Por certo, resíduo de sua prática docente. Dá o que pensar e o que descontar - é palavra em fala. A gana de comentar me move, tendo em vista que, ali, esse pensamento é amiúde glosado. Assim...



As ideias antigas (ou seu peso) não existem para que delas nos libertemos, mas para que as “relativizemos”. Elas devem nos seguir abraçadas sob a vigilância da dúvida (estão sempre seguindo). No correr do tempo, pedem divórcio ou perdão. Desfazermo-nos delas (ou de seu peso)? Nunca. Nós fomos e as somos - é nosso precário edifício. Soma portanto. E resto, as que não mais nos expressam nem dão conta do que imaginamos ser o mundo real. O discurso não é algo apartado da prática, ele é, em si, uma prática. Continuamos a ser aquela criança que subia na goiabeira, árvore cuja complexidade foi sucedida pelo discurso.



Todas as ideias surgem antigas ao "nascer". Verbalizadas, se fixam às palavras por óbvio, que pré-existem no emaranhado sintático de nosso pensamento. Antigas, portanto, são como um saguão que antecede os degraus que nos levarão a outro e desconhecido pavimento. Este, saguão de outro, e assim por diante, até não mais sabermos de onde partimos e aonde chegamos por inércia de sempre estarmos a pensar com palavras. Ideias, quando abandonadas em razão de não mais servirem como explicação de um mundo que se apresenta estranho, tornam-se um perigo para quem segue em frente, ou pensa estar seguindo. É andar sem patamares, pensando estar em comodidade. Pensar, de fato, não é confortável. É um nunca ajeitar-se, por isso a pessoa doutrinária é petrificada.



Talvez a característica de nosso tempo não seja propriamente a mudança, mas sua velocidade grande e maquinada. A impressão de desconhecermos para que direção, como pensa FHC, equivale a dizer que essa mudança não tem direção. Como a dizermos que se produzem cegamente dinheiro e objetos que entopem prateleiras e nossa casa. E muita ansiedade para adquiri-los e usá-los freneticamente. Nem bem sabemos pra quê. De outro modo, nos negarmos a embarcar nessa torrente, a deliberada atitude de pormo-nos na contramão, à margem, e, para aqueles que querem mas não podem, a sensação de “ficarem pra trás” e a angústia daí decorrente . Solidão de uns e escravidão de outros. O homem contemporâneo é, por condição, um animal infeliz a afogar-se em dívidas e a produzir montanhas de lixo, exposto a toda forma de auto-ilusão. Um imperfeito idiota. Não sento nessa mesa ou, pelo menos, busco não sentar. Prefiro ser “antiquado”. Quem sabe, em vão.



Desde sempre, as práticas mudam, o pensamento muda, nós mudamos e a expressão verbal por suposto e condição. A defasagem é do jogo, e é o motor que faz girar a beleza e grandeza da linguagem - a que nos faz homens. Nós somos objetos de sua "invenção". E, sujeitos. "É do pirão!". Estar aí no mundo supõe depararmo-nos com sustos sucessivos.



O Sr. Fernando Henrique Cardoso não precisava dizer o que disse. Ele sabe, é inteligente o bastante. É que a fala - ainda bem - é desobediente. Como as crianças quando se verbalizam. Quando nos damos conta, é tarde, já foi, escapou. Por isso, a palavra escrita, antes bem pesada, a que vem depois. O peso das ideias antigas decorre de sua repetição e, sobretudo, de seu registro escrito. Fala e escrita, uma corre atrás da outra; tentando se encontrar, nunca se cansam de escapar em dança de recíproca exclusão, nas torrentes dos livres pensar e expressar. Sócrates falava, Platão, depois, escreveu – uma maneira de atualizar o antigo na consciência dos leitores, na linha do tempo. Desconfiava-se da escrita. O que também não deixa de ser outro truísmo e uma glosa. É meu. Coisa de gente que fala sozinha.



Claudicantes, vivemos entre o sapato velho – deformado e de sola furada – e o, novo que aperta e mal se ajusta. O chão é indiferente, nos ignora. Condenados a caminhar sem descanso, na procura de incerto endereço, patinamos no escuro, pelos séculos.





Antônio Rebouças Falcão - Salvador, 12 de janeiro de 2013

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