SAUDADES DE SALVADOR
A cidade nem me surpreende tanto em sua fisionomia degradada, como se estivesse num processo inexorável de queda.
Sobre o que se pisa (ou não, porque se pula), ruas e calçadas, buracos, poças permanentes, bueiros entupidos, veículos expulsando pedestres. O que se vê no alto são paredões que ocultam o sol, o céu, as nuvens. Edifícios “mudernos” e medonhos. A praga dos helicópteros ruidosos se anuncia insidiosa.
O que, de lata, se move é estapafúrdio. Para um visitante desavisado, a cidade é paradoxalmente dinâmica e próspera. Os automóveis, quase todos novos, não andam, afogados em engarrafamentos. A imagem é monótona: quase todos pratas, pretos e brancos. Há os poucos vermelhos, signo mundial de esportividade e juventude. Mas é um cenário nacional, que vivemos em tempo de manadas. Os condutores seguem atolados em dívidas e maquininhas.
Existem os humanos e os quase-humanos, progênitos da escravidão, amontoados nos pontos de ônibus (ou quase-ônibus, caindo aos pedaços). Vestem-se de modo andrajoso e você não sabe se é moda ou pobreza mesmo, os segmentos sociais se vestem do mesmo jeito, mudam apenas as etiquetas, verdadeiras ou falsas: tênis, chinelos, bermudas, camisetas e bonés (traje masculino); shortinhos, saltos e blusinhas sumárias (traje feminino)– ah, e as indefectíveis mochilas, porque são todos mateiros ou guerrilheiros (estampa de camuflagem). Bem, os penteados... Nenhum comentário a fazer.
Cenário humano arrematado por celulares nas mãos e fiozinhos de toda espécie. Ninguém olha pra nada ou ninguém. Formam a maioria dos sem-passeatas que não saem das ruas. Ah, há os cachorrinhos e suas bostinhas que colhem nossas distraídas solas. E os baianos parecem felizes e bovinamente resignados a uma cidade que não funciona mais para nenhum deles.
Apesar de tudo, a contrapelo da crônica impura, faço constar: o povo baiano, em geral, na urbanidade pedestre, é muito simpático. Penso no povo da rua, não, na classinha mediazinha com suas ostentações vulgares. Aquele ali que vende sua pimenta e sua rama de coentro sob o sol da manhã e, depois, toma sua cachaçazinha no “balcão do desespero”.
Entretanto, como Salvador tornou-se uma cidade complexa, a população, por seu atavismo, convive mal com as implicações daí decorrentes: as relações contratuais, as regras banais, os pactos civis de convivência urbana são claudicantes. Não existe eficiência nos serviços, todos ruins e lentos. Saí de uma farmácia para chorar na rua, literalmente. A mocinha do caixa não sabia fazer uma conta de somar. Uma série de governos baianos foi incapaz sequer de fazer uma linha de metrô. Contabilidade podre, licitações com o câncer de sempre. E ninguém, ninguém mesmo toca na seca do sertão, que segue destruindo o que, sob o sol, fica de frente. Salvador dá as costas para o raso do resto.
A classe média, pela estampa jovem, dirige bêbada, são boçais com os pedestres. O uniforme corpóreo é a estiva de butique. Da simpatia à arrogância, basta um motor e um volante. Doença nacional. Todos cantam e dançam a qualquer oportunidade, é a impressão que passa. Os incomodados que se virem. Uma farra permanente sobre os escombros de uma sociedade esgarçada, que não para de estrudar. É como abafar timbalada com Tom Jobim, numa guerra de decibéis. Uma sombra escura que desce da Brasília nefasta.
Sua privacidade, seu sossego de fim de semana, tudo é invadido por uma festa estridente e constante. Não há respeito cordial, não há delicadeza. Tudo é meio bruto.
Infeliz e rezingão sou eu. Nenhuma cidade grande me apraz. Acho que as saudades são de minha pequena e amontoada casa paulistana. Ali não há gente de maus modos. Não há gentes, com exceção de minha diabólica presença. Infelizmente, há espelho. É incontornável suportar minha precária humanidade. Sinto saudades de quê? Já nem sei mais. Acho que de meus livros, de meu escuro e silêncio.
Salvador – julho de 2013
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