BASES
BINÁRIAS
A Érico
“Se quisermos estar em casa neste
planeta, mesmo ao preço de estar em casa neste século, precisamos tentar
participar do interminável diálogo com a essência do totalitarismo”. Hannah Arendt
Se me perguntassem, sem algum aviso antecipado,
sobre o que mais caracteriza o ser humano, diria que é sua percepção da
realidade objetiva (seja lá o que isso for) fundada em bases binárias. O que
vem a ser isso? É apreender tudo em dupla chave. Assim: preto/branco,
quente/frio, grosso/fino, doce/amargo, perto/longe, mais/menos, alto/baixo,
feio/bonito, claro/escuro, gordo/magro, certo/errado, solto/preso, bom/mau,
lento/veloz, e assim por diante, porque essas chaves parecem infinitas, tal
como a complexidade do mundo. Algumas delas devem também servir aos animais.
Não sei.
A maioria das pessoas, o comum delas, em
todos os lugares, não se descola dessas bases – a primeira orientação, as
balizas atávicas, o equilíbrio seminal. Aparentemente, nem é preciso. O grosso
das atividades humanas não demanda mais, uma vez que a maioria dos homens se
limita, por infeliz contingência, a subsistir. Essa maioria cresce e parece não
ser capaz de alçar voos, ou teme-os. No pedestre mundo prático, é compreensível
e justificável; no plano abstrato dos conceitos, da fome de transcendência,
aterroriza-a arriscar-se no impreciso, no indefinido. Sentir-se-ia, aí, afogada
no pântano escuro do mistério, da insegurança e da dúvida. As certezas se
plasmam e se ancoram nessas bases
binárias. Estas são o território, por excelência, das doutrinas, dogmas e
explicações definitivas. Inventa as religiões e as ideologias políticas –
coirmãs tantas vezes.
Elas são a mãe de todos os fanatismos e
extremismos – a convicção da posse da verdade, e assim é feita a
demiurgia de mundos. Todo fanático ou extremado é essencialmente burro
por colar-se rigidamente ao solo desses pares primários. Tem pavor a nuances e
ambiguidades. Atola-se nesse lamaçal sinistro. Quem não está com ele é inimigo
a ser extirpado. O fanático é perigoso e dado à violência em suma. Todo dilema e conflito
são resolvidos à força (vis, o étimo latino comum). O pregador severo
que não negocia, enfrenta; nem troca, impõe.
Assim, estamos diante do lastro humano
de toda espécie de totalitarismo. De outro modo, os totalitarismos são sempre o
mesmo. Inicialmente, a conquista, depois, a certeza de governo. É um só: o
prisioneiro das sobreditas bases, rente a esse chão funesto se dele não parte
para o alto. Rígido como liga de carbono.
A Arte, a Ciência e a procura do
Conhecimento têm as asas dos albatrozes. Insatisfeitas, têm a vocação para a crítica,
a superação, a negação, a desconfiança, a dúvida permanentes – a atividade de
pensar.
O caráter móvel e transfigurador da
primeira; o provisório permanente (ou vice-versa) da segunda; o imponderável e
intangível da terceira. Para elas, não cabem piso ou balizas. Tudo escapa ao
tentarmos pegar. Estamos sempre sem nada, ricos em nossa pobreza insaciável,
olhando para o céu em que desaparecem.
Não seguem nem gostam de ser seguidas. Não
ficam, fluidas que são. Mas, se eu estiver errado?
A.
R. Falcão – novembro de 2013
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