segunda-feira, 28 de novembro de 2016


A BANALIDADE DE UM BRASIL

Fechou o guarda-chuva e enxugou os sapatos. Entrou no sufoco e foi interrompida pelo porteiro: "Seu Afrânio passou por aqui, mas foi embora um pouquinho depois que a sra. foi trabalhar". Sibélia agradeceu, pegou o elevador, arrumou os cabelos no  velho espelho e saiu para o corredor escuro, comprido. Entrou correndo em casa já molhando a calcinha.

Como a bexiga já ia cheia, não viu que seu cachorrinho, Bilu, estava enforcado na cozinha. Sobre a mesa, um bilhete e a chave que ele usava. Viu depois: "Adeus pra nunca mais. Sua ratazana tentou me morder. Teve o que merecia. A.".  Sibélia ligou a televisão, recolheu o guarda-chuva agora aberto na varandinha, tirou o cachorro da forca, ensacou-o, foi à lixeira e desejou, com todas as forças, vingança embora amasse A. como nunca amou outro homem. Tirou o vestido, pendurou-o no armário com meticulosidade, pôs o moletom que ganhara de outro namorado, sentou no sofá e lubrificou a máquina de ódio.

O telefone tocou, atendeu. Era Bel, a “zinha” sirigaita do 92, que dava em cima de Afrânio. Não contou nada e despachou-a com a cólica que a atormentava desde jovenzinha. Chorou curto, com os olhos, em silêncio, pela primeira vez. Procurou no quarto qualquer coisa que fosse dele, nada. No armário do banheiro, nada. No boxe, cabelos no ralo, dos dois. Limpou tudo. Voltou pra sala, na televisão, a novela das sete. Na cristaleira, um resto de licor de jenipapo, que bebeu no gargalo, lambendo os beiços e os dedos melados que passara no bico. A máquina de ódio se movia novamente. Chorou outra vez quase do mesmo jeito, porque agora tossiu. Ele voltaria, era previsível, repetitivo, maldito, liso e deliciosamente violento.

Pegou, na gaveta da cozinha, a maior e mais amolada faca. Deixou-a à mão, perto da porta, atrás do filtro. Chorou outra e pela última vez. Passou uma semana em que foi trabalhar direitinho como sempre. Nela, ninguém notou nada. Mais duas outras assim. Nada de Afrânio. Até que Sibélia sumiu de vista para surpresa do porteiro, de Bel e de algumas poucas, outras “zinhas” da repartição.

Vai daqui, vai dali, o fedorento deu o ar da graça. No quarto de Afrânio, sobre a cama desarrumada, a cabeça e o rabo peludo de Biba, sua amada gatinha ora podre. As janelas escancaradas para a vizinhança fuxiqueira. Na mesa da cozinha sempre suja, o resto do felino mais a faca, um bilhete que A. nunca leria e a chave que ela usava: " Seu filho da puta, nunca mais. Quem vai beber leitinho no pires agora é você, canalha!"


Sabe-se hoje, de ouvir falar, que Afrânio e ela mudaram de bairro. Ele, ninguém sabe pra onde; Sibélia foi para o Grajaú. Virou congregada mariana, amante do padre e quituteira aos domingos e feriados. Às vezes, pra trocar de celular, comprar um vestido novo e visitar a parentalha no Recife, se prostitui no Pari. Bel ficou grávida do faxineiro, abortou no banheiro e morreu. É o que dizem, mas ninguém sabe ao certo, bem ao certo. Só o porteiro que deve ainda remoer: "Tava quase pegando da. Sibélia de jeito". Este é Anildo, que fugiu da Paraíba. Dezoito filhos largados, esposa escangalhada e jurado de morte por maridos e namorados. Ele que, vaidoso, contava ou mentia nos botecos. Um pândego.

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