segunda-feira, 29 de maio de 2017


O BÊBADO E O MAR

A embriaguez é uma forma peculiar e, ao mesmo tempo, comum de reclusão; você se encharca de um líquido estranho ao corpo, que o atira a um processo de dissolução em que todas as atitudes sociais estabelecidas se dissipam; quando esses nós rígida e prolongadamente atados, impostos e autoimpostos, ao longo da vida pública, se estilhaçam na explosão do porre e na aniquilação da ressaca; como o mar ao não se conformar com os limites impostos pelas barreiras naturais e artificiais à sua expansão.

Repare como o bêbado assim como destrói o que fisicamente o cerca através de pancadas, tombos e trombadas involuntárias, destrói-se no desarticulado da elocução, excessiva e inutilmente expandida - o interlocutor fugiu pela janela - diluindo-se  no líquido que anteriormente ingeriu; num contínuo alternar-se entre maré cheia e vazante, esta, a reclusão do autoengolir-se quando não mais restam garrafas e copos a esvaziar e nem esqueleto firme para sustentar-se, restando-lhe as horizontais do chão e da cama. E o horizonte de seus próprios monstros. Submerso sob a superfície da solidão inexorável, comum a todos, que, inevitavelmente, também desaparecerão. Farelos de memórias.


Marés influenciadas por uma segunda, antiga e incógnita lua que orbita em torno de uma existência subitamente percebida como precária e destituída de sentido. Então, os outros vão embora - às vezes, para sempre. Resta-lhe recolher os cacos e andrajos para mover-se de novo, pública e privadamente, na perversão da autocomplacência ou na urgente necessidade de deslocar a vida para a frente. Sem novamente saber bem pra quê. Como o mar, o bêbado anda deitado.

fotografia de Vivian Maier

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