segunda-feira, 29 de novembro de 2010

AS RELAÇÕES HUMANAS

"(...) O coração do homem é um abismo insondável, e um mistério que se não pode entender."
Frei Caneca

1. Nos eventos oníricos, há uma ausência presente, constituída pelo psiquismo do sonhador. Quando este conta seu sonho, tem-se, em vez do sonhador, um narrador. Assim, o que se ouve ou lê nos vem com todas as ordenações sintáticas próprias da linguagem e as estruturações exigidas pela narrativa. Suspeito que haja resíduos dessas estruturações no próprio sonho. Por que sonharia palavras? Assinalo: não sonho com palavras, eu as sonho. É provável que esteja inventando a roda. Portanto, quem conta um sonho não é um sonho que ele conta. Esta outra coisa é o quê?

Para ele que conta, presentifica-se, em consciência, parcelas do sonho ordenadas em causalidades diversas, oriundas de uma dimensão psíquica sobre a qual ele não exerceu controle consciente algum. Diferentemente do que ocorre quando ele narra.

Para quem ouve ou lê, não existe um sonho, mas um causo estapafúrdio, já alinhado em sequências minimamente lógicas – uma necessidade deformadora do próprio sonhador. O que o analista faz? Analisa o causo ou a necessidade deformadora? Ou ambos? Como poderá saber o que foi deformado se não lhe é dado o acesso àquilo que deu origem à narração, ou seja, o sonho?

Verdade é que o analista nunca terá, por objeto, um sonho. Mas, a incontornável mudez das pedras, que são as pessoas. Limitamo-nos a contemplá-las em seu esforço inútil para tornar presente o que está, para sempre, ausente.


2. Em todos os dias úteis, às seis horas da manhã, acontece de nos cruzarmos no mesmo lugar. Às vezes, alguns metros separam os vários pontos em que nossos olhares se enfrentam. Não mais que trinta.

Não nos conhecemos, quero dizer: nunca trocamos palavras. Há três anos, esse fantástico evento se repete.

Mês passado, resolvi: "Vou cumprimentar a figura humana." Um homem de meia idade, baixo, bigodes negros e cheios, entradas acentuadas, ar bonachão e barriga coerente. Pastinha na mão. Quem sabe assim o cumprimento crie um delicado liame.

Bem, o tal momento chegou, melhor diria: foi criado. Num início rascunhado da manhã, lá vinha a pessoa, o mesmo passo de sempre, como o meu. Próximos o bastante, lasquei o Bom-Dia. Formal, sisudo, de alguém a caminho da lida, sem tempo. Seu rosto enrijeceu-se numa quase deformação embolada, uma súbita reação alérgica, um espasmo, um espanto. Mas seu bom-dia afinal saiu, tímido, com dificuldade, mas escapou. Inicialmente, circunspecto; em seguida, surpreso; depois, especulativo. Num segundo.

E fui repetindo o gesto nos dias subsequentes, e semanas mais. Assim, a deformação foi desaparecendo, substituída por uma máscara de bronze, pesada. Contudo, correta.

Foi então que, hoje, a coisa mudou. Mandei-lhe o bom-dia. E, ora, espantado fiquei eu: abriu-me um amplo e afável sorriso. Plenamente correspondido, apenas com um átimo de atraso. Mas foi.

Segui pensando (ele deve ter feito o mesmo): deve ser o verão. As nuvens ali, naquele momento, tinham as mangas curtas. E a manhã vinha de sandálias, azul. O sol, impaciente. Havia uma brisa, havia, então, uma improvável esperança.


3. Quando expresso reflexões com as quais concordo, sinto-me muito mal. Ao contrário, ocorre de me divertir. Por que será que só é aceitável que se escreva sobre aquilo que nos parece razoável ou admissível?

Divergindo, posso fazê-lo através de uma personagem, a meu juízo, execrável, mas, se vai meu nome, tem de estar em harmonia com minhas convicções. Neste caso, sinto colar-me uma voz postiça, como se não fosse minha. Daí o desconforto. Estranho.

Poderia tentar um artifício que já vejo como de pouca eficácia: escrever de forma impessoal; abolir a primeira pessoa e criar um heterônimo. Não é por aí, acabariam descobrindo e o prazer não teria o tamanho. Dizem que o papel em branco aceita tudo, não é verdade. O papel sim, os leitores próximos não. Não vejo saída, mas... Repito: a diversão está em deitar o próprio nome num texto diferente de meus outros, e ver inúmeras gentes atirar pedras (lito-inclusão), tomates, ovos sobre meu telhado. Pessoas que estão aí para defender a tolerância com a diferença (o famigerado assunto-chiclete).

A diferença dos outros, é claro. Não, daqueles que pertencem ao seu círculo de afinidades. Entenderiam como traição, ou algo que o valha, e eu seria, quem sabe, na melhor das hipóteses, educadamente rejeitado nas rodas de bar, nos restaurantes, no trabalho, nos aniversários e no leito conjugal.

Pelo desvio, se pode conhecer os efeitos deletérios da norma. O diferente é fundamental. O intolerante é doente. Só para não dizer: É humano. Os sãos que se apresentem.

O diferente (e afastado) intolerante é mingau; o semelhante, insuportável. Num caso ou noutro, trata-se, no fundo, de controles: autocontrole e controle do outro – reflexividade e reciprocidade. É assim com os preconceitos, que são inamovíveis do coração humano, porque irracionais. Sempre haverá, enquanto este mamífero existir. A ação sobre eles (os preconceitos) com chances de frutos benéficos se dá em seu controle.

Extirpá-los é propósito de gente ingênua, para não dizer outra coisa. Os diálogos a se ver e ouvir, nesse imbróglio, parecerão conversa de ateu com crente. Não compareça.

Ser tolerante com o afastado é cômodo. Quero ver dividir a mesa, a cama. Há inúmeras formas de intolerância dissimulada: ser mudo, reticente, não atender o telefone, atravessar a rua ou sumir da área. O intolerante não o seria menos; ficaria apenas invisível. Um tipo esquisitão, entretanto aceitável, inofensivo. Quando o diferente intolerante pode vir a calhar. O diferente vizinho não pode; o intolerante transparente não pode, e estamos conversados. Num mundo regido pela retórica midiática, a coisa funciona assim: não importa o que você seja, interessa que não pareça politicamente incorreto. E viva a hipocrisia!

Essas conversinhas de respeito às diferenças, que são uma conversona a penetrar todos os poros, ambientes e situações como praga e tropa de elite 3 mais ocultam que revelam as disposições íntimas.

João não se sente atraído por Maria, porque ela tem bigodes. Pobrezinha, vai sofrer a dor da rejeição num amor que lhe explode o coração. Se fizer a barba, pior: os pelos ficarão cada vez mais duros e amargará a rotina de barbear-se, no futuro, diariamente. Que fazer? Nada. A vida segue com as diferenças que separam.

Seria, então, feliz com um João de seios avantajados, num jogo de empate? Depois, casados, pediria a ele que fosse ao mercado, usando um colete à prova de balas, para comprar um novo aparelho de barbear? Não sei, nem quero saber. Dá-se o caso de nada mais me surpreender. Assim, passo sempre por tolerante exemplar.

É bom acostumar-se, que vivemos um tempo em que, a uma conversona, seguem muitas outras, numa procissão interminável de virtudes jamais imaginadas.

antônio rebouças falcão – 27.XI.2010

Um comentário:

Eduardo Lara Resende disse...

A incontornável mudez das pedras... Muito boa metáfora! Gostei do texto, da descrição das feições 'petrificadas' (e não pétreas) do gordo bonachão.
Grande abraço.