sábado, 23 de julho de 2011



ÁLBUNS DE FOTOGRAFIAS

Foi em meados do séc. XIX que surgiram, quando a fotografia foi se tornando comum e um negócio lucrativo. Foi também na mesma época em que os pintores ruins se vingaram dela e tornaram-se retocadores (espécie de proto-photoshop). O mau gosto se generalizou e os álbuns de fotografia foram parar na sala de visita sob a forma de volumes pretensamente luxuosos, para serem vistos, admirados. Assim como seus proprietários, agora cúmplices do progresso técnico-científico. Nosso D. Pedro II era um deles. Dá até pra imaginar, basta revisitar aqueles cenários de terror na frente dos quais as pessoas posavam nos estúdios fotográficos. Os álbuns me fazem pensar despretenciosamente.

São drops de memória, mas com uma peculiaridade: as lembranças não vêm do acaso, como as que surgem em meio a riachos de pensamentos vadios, sonhos, semelhanças entrevistas. São lembranças induzidas e fragmentárias; põem-se à nossa frente e dizem: "me lembre agora". Têm a autoridade de testemunho. Nisso há aquele certo incômodo provocado pela desfaçatez do que não lhe pede licença.

Muitas cenas, poses, pessoas e paisagens têm o dom malévolo de nos evocar perdas indesejáveis, dores adormecidas. Num virar de folha, somos atirados a feras noturnas; num desfile, o que se foi para nunca mais: nossa juventude, certo vigor, a disponibilidade para a vida de que não mais desfrutamos, nossa e das gentes que conhecemos e amamos. O retrato da parede é outra coisa, é o tempo travestido em figura que nos vigia.

Como as imagens congeladas no tempo têm seu futuro em nosso presente, sabemos bem as escolhas erradas - o destino que atravessou (atropelou) a promessa de algumas jornadas: "este morreu", "ela desapareceu", "não sei quem é", "o que tinha na cabeça para...?", "não tenho mais, furtaram-me". Assim no diante.

Repara: os álbuns são pouco visitados, tais como livros lidos e relidos. São melhores quando não-procurados, mas encontrados por acaso no fundo dos armários, gavetas, estantes. E dizem: "ah, me abre". Se colocados em nosso colo, a história é outra, é o ajuste de contas; atiramos o anzol para pescar alguma forma de nos punirmos.

Quando não é nada disso, faz alegria em nossos olhos. Mas, se o álbum é alheio, sentimos um frio de estranhamento, semelhante àquele vivido ao vestirmos roupas de outrem, de um falecido cujas vestimentas herdamos. Não somos envolvidos pelas imagens, porque há uma zona de sombra, de ninguém, entre nós e o visto, vestido.

No entanto, os montamos, os guardamos, nos são oferecidos à visão. Certos de nossos deslocamentos são feitos na companhia de uma câmera. Muitas das fotografias acabam se apossando da aura dos tesouros, sem a antecipação do vislumbre. Outras querem já nascer como tais, no instante do registro - o fotógrafo que se mostra mais que o mostrado. E "monumentam-se" em fileiras, pilhas, em caixas. Os álbuns, em permanente singularidade, são cerimônias do adeus.

Nas épocas em que a fotografia nem sequer era imaginada, as reminiscências chegavam às pessoas por narrativas e descrições orais, por desenhos ou pinturas, bem ou mal formadas. De que modo fossem e forem, esses tempos remexidos e temperados, nas imagens a ver e ouvir, são caminhadas inseguras, pisos irregulares, luzes ora ofuscantes ora reveladoras, temas complexos para espíritos quase sempre despreparados, desamparados. Os tempos se disfarçam em sedução irresistível e vertigem. É bom seguir com serenidade e resignação, as páginas de tantos álbuns pedem ser viradas com o bom vagar.

De inusitados bons modos, eles sabem recolher-se a tempo, no abraço das capas que se fecham. Voltam lá para seu repouso, em provisório esquecimento de gaveta. Impertinentes somos nós - os que não se cansam de lembrar.

Salvador, julho de 2011

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