segunda-feira, 29 de setembro de 2014


A MALDIÇÃO DOS CLICHÊS

 

Entre tantas aberrações verificáveis no comportamento das pessoas nos dias atuais, o mais ostensivo e estridente é a tendência a manifestações por meio de rebanhos. Parece um paradoxo: uma cultura social que, a toda hora, é criticada por seu individualismo e egoísmo exacerbados promove, a todo instante, ações e movimentos que resultam em manadas nas ruas, a ver: ciclismo militante, shows musicais, torcidas organizadas, multidões de fiéis evangélicos, as marchas por qualquer coisa, as maratonas, os agita-galeras, as jornadas indistintas, as viradas, paradas pra todos os gostos e por aí vai.

 Os equipamentos eletrônicos e suas consequentes redes sociais de media, a brutal dependência dos smartphones e a inevitável conectividade patológica fazem o resto; e temos os transeuntes aleijões: cegos, porque não olham para a frente quando caminham (precisamos desviar) e colunas vertebrais retorcidas no afã de enviar e receber mensagens sem fim e fins. Portanto, não há mundo íntimo; não há o estar consigo; o eu mesmo é insuficiente e vai sendo extirpado. As pessoas são provisoriamente elas e seu Facebook, são apêndices de maquininhas e softwares. 

 Bem, assim não parece estranho e pode explicar o paradoxo mencionado: o Brasil teve e segue tendo uma urbanização abrupta, física e virtualmente: o inchaço caótico das metrópoles e a difusão, na ligeireza, da televisão e, agora, da internet em seus vários suportes. Resulta uma horda atirada dos cafundós para certa modernidade do atraso: contingentes notáveis de pessoas que não sabem se comportar no espaço público; não sabem sequer andar na rua, dirigir automóveis e morar em condomínios. Seus ascendentes saíram do Brasil profundo e abraçaram as metrópoles, perderam seu mundo riquíssimo de origem e ficaram culturalmente esgarçados, sem eira nem beira. Sem mencionar o analfabetismo funcional esparramado em todos os segmentos sociais. A cultura reduziu-se a esportes de massas, músicas de mediocridade assustadora, livros de autoajuda e best-sellers descartáveis que passam de mão em mão. A outra cultura protege-se em nichos ainda alcançáveis.

 Há alguns anos, Chico Buarque dizia que o Brasil havia perdido sua delicadeza; é dizer pouco: ele tornou-se um país bruto, bárbaro, violento, incivil, sem o menor traço de urbanidade, bichado por corrupção em todos os níveis. É um país de despreparados, de cima a baixo. Não poderia ser diferente. Educação, saúde e segurança definham celeremente..

 E onde entram os clichês? São o reflexo do tudo na linguagem, a face verbal da indigência mental e cultural. Os clichês dispensam o falante de pensar com a própria cabeça e personalizar sua expressão, sua marca de individualidade na massa amorfa e anônima. É a linguagem pronta para uso imediato, como as roupas industrializadas e a moda impositiva que vestem de forma uniforme a todos, ocultando diferenças num padrão confortável de disfarces da inópia. Basta que abram a boca e o desastre está instalado. E vêm de enxurrada vocábulos e sintagmas, hoje, já vazios: a nível de, enfim, no que se refere, sustentabilidade, qualidade de vida, autoestima, tipo, protagonismo, mano, tio-tiozinho, empreendedorismo, agregar, como um todo, com certeza, stress etc. Até o uso medido e criterioso do palavrão evaporou-se; tornou-se componente indispensável em qualquer fraseado coloquial, o sal da oralidade, e você tem a geração porra-caralho, intratável, descortês, sem interlocução minimamente civilizada possível. Um praga, uma doença de fato.

 Caminhamos para nos tornarmos um país de surdos-mudos uma vez que estamos prisioneiros de uma linguagem oca de sentidos. De forma que a conectividade compulsiva e demente não passa de ilusão, e a solidão perversa inunda as relações; as pessoas precisam estar fisicamente agrupadas a todo instante; chamam a isso pertencimento. Não é, é ordem-unida em ação e pensamento. Mussolini conhecia muito bem o sintoma.

 Tomo palavras de Berta Waldman*: "Um dos principais responsáveis pelo entranhamento do vazio (...) é o clichê, entendido como a fala citada, o molde, que não remete a um ato individual de percepção diante de um elemento único da experiência. O clichê promove a diluição desses caracteres irredutíveis, anulando a observação original de um objeto específico, reorganizando-o sob a forma de estereótipo". Como não há novidade no horizonte dos comportamentos e ideias, "podem irem, que eu não vai".

 * Professora aposentada de literatura da USP e UNICAMP. É autora de Entre passos e rastros. Dedicou-se ao estudo acurado da obra de Dalton Trevisan.

 

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