A MALDIÇÃO DOS CLICHÊS
Entre tantas aberrações
verificáveis no comportamento das pessoas nos dias atuais, o mais ostensivo e
estridente é a tendência a manifestações por meio de rebanhos. Parece um
paradoxo: uma cultura social que, a toda hora, é criticada por seu
individualismo e egoísmo exacerbados promove, a todo instante, ações e
movimentos que resultam em manadas nas ruas, a ver: ciclismo militante, shows
musicais, torcidas organizadas, multidões de fiéis evangélicos, as marchas por
qualquer coisa, as maratonas, os agita-galeras, as jornadas indistintas, as
viradas, paradas pra todos os gostos e por aí vai.
Os equipamentos eletrônicos e
suas consequentes redes sociais de media, a brutal dependência dos smartphones
e a inevitável conectividade patológica fazem o resto; e temos os transeuntes
aleijões: cegos, porque não olham para a frente quando caminham (precisamos
desviar) e colunas vertebrais retorcidas no afã de enviar e receber mensagens
sem fim e fins. Portanto, não há mundo íntimo; não há o estar consigo; o
eu mesmo é insuficiente e vai sendo extirpado. As pessoas são
provisoriamente elas e seu Facebook, são apêndices de maquininhas
e softwares.
Bem, assim não parece estranho
e pode explicar o paradoxo mencionado: o Brasil teve e segue tendo uma
urbanização abrupta, física e virtualmente: o inchaço caótico das metrópoles e
a difusão, na ligeireza, da televisão e, agora, da internet em seus
vários suportes. Resulta uma horda atirada dos cafundós para certa
modernidade do atraso: contingentes notáveis de pessoas que não sabem se
comportar no espaço público; não sabem sequer andar na rua, dirigir automóveis
e morar em condomínios. Seus ascendentes saíram do Brasil profundo e abraçaram
as metrópoles, perderam seu mundo riquíssimo de origem e ficaram culturalmente
esgarçados, sem eira nem beira. Sem mencionar o analfabetismo funcional
esparramado em todos os segmentos sociais. A cultura reduziu-se a esportes de
massas, músicas de mediocridade assustadora, livros de autoajuda e best-sellers
descartáveis que passam de mão em mão. A outra cultura protege-se em nichos
ainda alcançáveis.
Há alguns anos, Chico Buarque
dizia que o Brasil havia perdido sua delicadeza; é dizer pouco: ele tornou-se
um país bruto, bárbaro, violento, incivil, sem o menor traço de urbanidade,
bichado por corrupção em todos os níveis. É um país de despreparados, de cima a
baixo. Não poderia ser diferente. Educação, saúde e segurança definham
celeremente..
E onde entram os clichês? São
o reflexo do tudo na linguagem, a face verbal da indigência mental e cultural.
Os clichês dispensam o falante de pensar com a própria cabeça e personalizar
sua expressão, sua marca de individualidade na massa amorfa e anônima. É a
linguagem pronta para uso imediato, como as roupas industrializadas e a moda
impositiva que vestem de forma uniforme a todos, ocultando diferenças num
padrão confortável de disfarces da inópia. Basta que abram a boca e o desastre
está instalado. E vêm de enxurrada vocábulos e sintagmas, hoje, já vazios: a
nível de, enfim, no que se refere, sustentabilidade, qualidade
de vida, autoestima, tipo, protagonismo, mano, tio-tiozinho,
empreendedorismo, agregar, como um todo, com certeza,
stress etc. Até o uso medido e criterioso do palavrão
evaporou-se; tornou-se componente indispensável em qualquer fraseado coloquial,
o sal da oralidade, e você tem a geração porra-caralho, intratável,
descortês, sem interlocução minimamente civilizada possível. Um praga, uma
doença de fato.
Caminhamos para nos tornarmos
um país de surdos-mudos uma vez que estamos prisioneiros de uma linguagem oca
de sentidos. De forma que a conectividade compulsiva e demente não passa de
ilusão, e a solidão perversa inunda as relações; as pessoas precisam estar
fisicamente agrupadas a todo instante; chamam a isso pertencimento. Não
é, é ordem-unida em ação e pensamento. Mussolini conhecia muito bem o sintoma.
Tomo palavras de Berta Waldman*:
"Um dos principais responsáveis pelo entranhamento do vazio (...) é o
clichê, entendido como a fala citada, o molde, que não remete a um ato
individual de percepção diante de um elemento único da experiência. O clichê
promove a diluição desses caracteres irredutíveis, anulando a observação
original de um objeto específico, reorganizando-o sob a forma de
estereótipo". Como não há novidade no horizonte dos comportamentos e
ideias, "podem irem, que eu não vai".
* Professora aposentada de literatura da USP e
UNICAMP. É autora de Entre passos e rastros. Dedicou-se ao estudo
acurado da obra de Dalton Trevisan.
Nenhum comentário:
Postar um comentário