segunda-feira, 26 de setembro de 2016


JÁ ERA TEMPO
A Paola

Embora tenha as pernas e ainda possa saltá-lo, não resisto a aproximar meus olhos deste muro diante de mim. Como se hipnotizada por sua inevitabilidade. É um muro de virtudes vegetais. Nasceu como erva daninha. Inicialmente não notado, foi ganhando altura e corpo; hoje me cerca sem cerimônia, me lança ao calabouço. Surge o sol, vem o dia, segue a noite e deixo-me deitada a seus pés. Sei que ainda posso. Entretanto, cada vez mais, tenho cada vez menos disposição de transpô-lo, ele que cresce avidamente.


As noites vão se tornando mais longas como fios de meus cabelos. Minhas roupas se esfarraparão, até que, despojada de tudo, me largarei em indesejada nudez, plena de mim mesma. Há de servir-me a pele vulnerável. Sei que, coberta de pedras, tomarei a forma de ovo mineral, ciente de que ainda posso quebrar-lhe a casca granítica. Já era tempo e vai-se o tempo como um rio de milagres adiados. Me deixarei assim, no aguardo de uma ave metafísica que há de chocar-me. Sei que ainda posso. Vejo-me lá fora com nitidez, a capinar as ervas que crescem sob a vigilância branca da lua. Nunca adormeço em vão, que tenho sonhos a engendrar. Sei que ainda posso.

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