segunda-feira, 26 de setembro de 2016


MAÇADA OU A ANGÚSTIA DOS OUTROS

Há algum tempo, uma coisa intrigava Nicolau: por que o número de religiosos, falsos e verdadeiros, aumentava tanto? Católicos carismáticos, evangélicos de toda espécie, místicos desvairados, crentes "fashions", por aí afora. Fanáticos de toda  gama. Este é o ponto, a religião nem tanto. Configuram manadas; coisa fora de controle. E ele estava intrigado, amuado. O pior é que acabavam sempre por tirar-lhe o sossego que tanto prezava. Não é que, num outro dia, certo grupo de insanos soltos, escapados do repouso doméstico, quiseram porque quiseram convertê-lo à força e atirá-lo num albergue para desencaminhados? Por sorte e esperteza, com alguma agilidade inesperada e providencial, conseguiu escapar e escafedeu-se pelo mundo das campinas, ravinas, cavernas e dos riachos doces e, o melhor de tudo, vazio de gentes.

Bem, mas lá seguia pela estrada Nicolau com seu velho saco*, tranquilo em suas meditações e angústias amenas. A manhã começava agradável e ensolarada. Os insetos e passarinhos já estavam assanhados, ele perscrutava o horizonte (plural no caso dele) quando se deparou com uma aldeiazinha lá longe.  Não sabia que, dessa vez, o dia vinha acerbo, mas sentia algo no ar - estava tudo tão formidável! Mais tarde, indagar-se-ia: por que não se desviou a tempo e tomou destino vário pelo campo verde e largo?

Sem dar com o caso, inadvertidamente, entrou pela aldeia engraçadinha: galinhas e pintinhos pela rua, vira-latas se coçando nas sombras, jegues espantando moscas com os rabos, palmas, velhos sentados nas poucas e amplas varandas, roupas nos varais dos fundos, muitas mangueiras e goiabeiras, passarinhos aos montes, crianças, a indefectível capela sem padre, essas coisas do mundinho do sertão.  E seguiu seus passos seguros e preguiçosos para, sem querer, dar na frente da capela. Deu com a testa na parede.

Em sua frente,  o destino aziago. Foi logo interpelado por um crente daqueles, os das severas convicções. É o que parecia; não suspeitava que fosse um domingo depois das rezas nem que aquele fosse o zelador do templo tosco. Como poderia?

- Você que é o famoso Nicolau dos caminhos perdidos? De Bíblia na mão, foi logo interrogando com sua voz aguda. Nicolau não se dava bem com agudos.
- Sim, sou. Severa era sua fisionomia, sabia que a bela manhã lhe traíra.
- Posso lhe fazer uma pergunta?
- Quantas quiser se estiver desocupado. Eu sempre estou. É a minha ocupação. Mas,hoje, agora, que seja uma só.
- Diz a lenda que o senhor não crê em nada. Como pode? Deus está aqui a nos ver e nos proteger. Não acredita?
- Não. Creio em muito pouca coisa. Como, por exemplo: amanhã será outro dia; ontem já aconteceu. Isto me basta para suprir quaisquer carências de fé, coisa estranha.
- Mas o senhor não acha que ele governa o mundo?
- Ele quem, senhor? E o mundo é lá governado? O que vejo por aí é só desgoverno. O mundo existe nos braços do acaso, das causas não anunciadas. Elas simplesmente vão entrando pela casa. Somos efeito, consequência vadia.
- Mas... E você aí com esse cigarro na boca. Faz mal.
Com a ira quase sob controle, logo emendou, brusquidão:
-Não tem "mas". E mais: o que faz mal é a vida. A vida é que mata. Para não morrer, basta não nascer. Este é o segredo. Pense bem, nascer pra quê? Felizes mesmo são aqueles que não nasceram ou já nasceram mortos. O resto é conversa e remédios , quando os há, dos postos de saúde e crençazinha em profusão. Miséria,miséria. Não quero ser  rude. Com licença, que vou indo, um riacho me espera. O fanático arregalou os olhos apavorado, recebeu um empurrão e, depois, saiu em disparada demente. A eloquência foi letal.

Para Nicolau, outra conversa maçante. O dia estava iluminado, lindo para tamanho pesadelo. Parar só no bem-bom. Foi o que fez. Seguiu em frente como nunca deixa de fazer. Mais alguns quilômetros e estava à beira de um riacho, nas sombras dos arbustos marginais. Não pensou em nada que não fosse aquilo: caçou minhocas na lama da franja das águas, montou a isca no precioso anzol e lançou a linha e tudo para o fundo do riacho. Tinha o almoço, estava feito. Por sobremesa, algumas mangas colhidas de passagem na aldeia do crente fanático, burro e enfadonho. O bem-bom estava ali, a seu alcance.


* O SACO DE NICOLAU

Num dia qualquer, num bairro burguês qualquer, em sua última parada nas vizinhanças urbanas, Nicolau que, por essa época, andava de mãos vazias, já resolvido a largar-se pelo mundo, decidiu escabichar os lixos das redondezas. Foi quando encontrou o tal saco e outras coisinhas mais: um velho canivete de bom tamanho (bem cuidado, serviria), um lápis e um caderno estropiado, sem uso, uma bússola quebrada (a calhar), um pedaço de linha de pesca já atada a anzol (olha que sorte - ele não entendia nada de nós), meias de lã furadas, um velho chapéu de palha que daria para o gasto, um casaco manchado, um copo plástico e um garfo enferrujado (bem cuidado, serviria), também plástico, um prato, uma caixa de fósforos “cheiinha”, um "aurelinho" em desacordo com o acordo e outras bugigangas de utilidade incerta, mas vai saber...

Nicolau recolheu tudo ao saco para que, depois, desse um jeito nas migalhas. Foi o que fez. Naquele dia, deu-se por satisfeito e foi embora feliz. O mundo grande o esperava. Começava ali sua solitária jornada em noite enluarada. Bom presságio para quem não acredita nisso.

Nenhum comentário: