MAÇADA
OU A ANGÚSTIA DOS OUTROS
Há algum tempo, uma coisa intrigava
Nicolau: por que o número de religiosos, falsos e verdadeiros, aumentava tanto?
Católicos carismáticos, evangélicos de toda espécie, místicos desvairados,
crentes "fashions", por aí afora. Fanáticos de toda gama. Este é o ponto, a religião nem tanto.
Configuram manadas; coisa fora de controle. E ele estava intrigado, amuado. O
pior é que acabavam sempre por tirar-lhe o sossego que tanto prezava. Não é
que, num outro dia, certo grupo de insanos soltos, escapados do repouso
doméstico, quiseram porque quiseram convertê-lo à força e atirá-lo num albergue
para desencaminhados? Por sorte e esperteza, com alguma agilidade inesperada e providencial,
conseguiu escapar e escafedeu-se pelo mundo das campinas, ravinas, cavernas e
dos riachos doces e, o melhor de tudo, vazio de gentes.
Bem, mas lá seguia pela estrada
Nicolau com seu velho saco*, tranquilo em suas meditações e angústias amenas. A
manhã começava agradável e ensolarada. Os insetos e passarinhos já estavam
assanhados, ele perscrutava o horizonte (plural no caso dele) quando se deparou
com uma aldeiazinha lá longe. Não sabia
que, dessa vez, o dia vinha acerbo, mas sentia algo no ar - estava tudo tão
formidável! Mais tarde, indagar-se-ia: por que não se desviou a tempo e tomou
destino vário pelo campo verde e largo?
Sem dar com o caso, inadvertidamente,
entrou pela aldeia engraçadinha: galinhas e pintinhos pela rua, vira-latas se
coçando nas sombras, jegues espantando moscas com os rabos, palmas, velhos
sentados nas poucas e amplas varandas, roupas nos varais dos fundos, muitas
mangueiras e goiabeiras, passarinhos aos montes, crianças, a indefectível
capela sem padre, essas coisas do mundinho do sertão. E seguiu seus passos seguros e preguiçosos
para, sem querer, dar na frente da capela. Deu com a testa na parede.
Em sua frente, o destino aziago. Foi logo interpelado por um
crente daqueles, os das severas convicções. É o que parecia; não suspeitava que
fosse um domingo depois das rezas nem que aquele fosse o zelador do templo
tosco. Como poderia?
- Você que é o famoso Nicolau dos
caminhos perdidos? De Bíblia na mão, foi logo interrogando com sua voz aguda.
Nicolau não se dava bem com agudos.
- Sim, sou. Severa era sua
fisionomia, sabia que a bela manhã lhe traíra.
- Posso lhe fazer uma pergunta?
- Quantas quiser se estiver
desocupado. Eu sempre estou. É a minha ocupação. Mas,hoje, agora, que seja uma
só.
- Diz a lenda que o senhor não crê em
nada. Como pode? Deus está aqui a nos ver e nos proteger. Não acredita?
- Não. Creio em muito pouca coisa.
Como, por exemplo: amanhã será outro dia; ontem já aconteceu. Isto me basta
para suprir quaisquer carências de fé, coisa estranha.
- Mas o senhor não acha que ele
governa o mundo?
- Ele quem, senhor? E o mundo é lá
governado? O que vejo por aí é só desgoverno. O mundo existe nos braços do
acaso, das causas não anunciadas. Elas simplesmente vão entrando pela casa.
Somos efeito, consequência vadia.
- Mas... E você aí com esse cigarro
na boca. Faz mal.
Com a ira quase sob controle, logo
emendou, brusquidão:
-Não tem "mas". E mais: o
que faz mal é a vida. A vida é que mata. Para não morrer, basta não nascer.
Este é o segredo. Pense bem, nascer pra quê? Felizes mesmo são aqueles que não
nasceram ou já nasceram mortos. O resto é conversa e remédios , quando os há,
dos postos de saúde e crençazinha em profusão. Miséria,miséria. Não quero
ser rude. Com licença, que vou indo, um
riacho me espera. O fanático arregalou os olhos apavorado, recebeu um empurrão
e, depois, saiu em disparada demente. A eloquência foi letal.
Para Nicolau, outra conversa maçante.
O dia estava iluminado, lindo para tamanho pesadelo. Parar só no bem-bom. Foi o
que fez. Seguiu em frente como nunca deixa de fazer. Mais alguns quilômetros e
estava à beira de um riacho, nas sombras dos arbustos marginais. Não pensou em
nada que não fosse aquilo: caçou minhocas na lama da franja das águas, montou a
isca no precioso anzol e lançou a linha e tudo para o fundo do riacho. Tinha o
almoço, estava feito. Por sobremesa, algumas mangas colhidas de passagem na
aldeia do crente fanático, burro e enfadonho. O bem-bom estava ali, a seu
alcance.
*
O SACO DE NICOLAU
Num dia qualquer, num bairro burguês
qualquer, em sua última parada nas vizinhanças urbanas, Nicolau que, por essa
época, andava de mãos vazias, já resolvido a largar-se pelo mundo, decidiu
escabichar os lixos das redondezas. Foi quando encontrou o tal saco e outras
coisinhas mais: um velho canivete de bom tamanho (bem cuidado, serviria), um
lápis e um caderno estropiado, sem uso, uma bússola quebrada (a calhar), um
pedaço de linha de pesca já atada a anzol (olha que sorte - ele não entendia
nada de nós), meias de lã furadas, um velho chapéu de palha que daria para o
gasto, um casaco manchado, um copo plástico e um garfo enferrujado (bem
cuidado, serviria), também plástico, um prato, uma caixa de fósforos
“cheiinha”, um "aurelinho" em desacordo com o acordo e outras
bugigangas de utilidade incerta, mas vai saber...
Nicolau recolheu tudo ao saco para
que, depois, desse um jeito nas migalhas. Foi o que fez. Naquele dia, deu-se
por satisfeito e foi embora feliz. O mundo grande o esperava. Começava ali sua
solitária jornada em noite enluarada. Bom presságio para quem não acredita
nisso.
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