NA
CABEÇA
A vida é sagrada. É curioso que um
cético [ver Maçada ou a Angústia dos Outros] e pessimista de nomeada
pense algo assim, mas é o que Nicolau pensa, com algumas ressalvas. Trabalha,
"grosso modo", sobre duas noções criadas por ele: o uso vital da vida
e o uso mortal. A sacralidade estaria no primeiro; o danoso, no segundo. Vital
é o gozo da dádiva (do nada, de ninguém) em ser livre das amarras que o
cotidiano civilizatório impõe, particularmente nas metrópoles e suas injunções,
onde as pessoas se amontoam. Mortal é o trabalho embrutecedor, os compromissos
infindáveis das convenções sociais, o organismo submetido ao relógio da
servidão nos empregos, a quantificação obsedante de todas as esferas da vida,
as estatísticas duvidosas de controle, a saúde monitorada pela medicina
mercantil, pelas academias de ginástica, pela alimentação transformada em
dietas da insuportável "qualidade de vida", pela
"autoestima" portátil dos consultórios de variada procedência etc. Em
suma, a simples e estupefaciente instrumentalização do corpo com um único e
quase oculto fito: aumentar a produtividade.
O caráter dominador dessa avalanche
tornou-se tão avassalador que ao ser humano não sobrou escapatória, daí o
ineludível pessimismo de Nicolau. Ele não vê mais saída, é o fim. Por isso
largou tudo e fugiu para o contramundo, sem qualquer esperança, que não é coisa
dele, que ele execra [ver Coisas de Nicolau]. Nicolau é desistência. A
vida que preferiu levar não é receita para ninguém, não supõe seguidores, que
não se pretende guru, é mais um antiguru. Sua vida presente é apenas o modo que
escolheu para seus últimos anos, para se despedir da peculiar sacralidade da
vida que concebeu para si. Ele está por aí com seu sorriso desassombrado, em
qualquer lugar, menos aqui nas grandes cidades, nos empregos, na patologia das
vidas familiares, nos amores sempre doentes, nas carências insaciáveis, no
consumo conspícuo, nas novas tecnologias escravizadoras e tudo mais que todos
estão fartos de conhecer e sofrer. Às vezes, sem nem sequer saber do lamaçal em
que estão atolados.
Há quem sorria de prazer com o lodo
imundo pela garganta. Sabe-lhe a chocolate. Esse tipo de mamífero enche as
ruas, as redes sociais, os centros de compras e imagina que pensa. Não para
Nicolau, o iludido apenas regurgita o que se lhe é oferecido sem a menor
cerimônia pelo "marketing" de todas as horas. Cerimônia para quê? Ele
não gosta? Que se entupa portanto, não passa de um saco vazio de crítica, de
pensamentos e idéias. Nicolau está certo? Difícil dizer, ele jamais gostaria de
julgar-se certo em qualquer coisa. É um homem
das incertezas. Ele agora quer é recolher-se, em sossego,
desacompanhado, a seus riachos, suas reflexões e angústias amenas. Não se deixa
pegar: plana nas nuvens das desconfianças e das dúvidas axiais.
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