quarta-feira, 16 de novembro de 2016


MIÚDOS

Atavismo
Se familiares,
Os falares habitam o fundo
De cada um de nós, lá,
Na casa escura
De nossos velhos molares.

Culpa
Se, ao abrir o melão,
Cortar o dedo, vá ao porão,
Atire a faca aos besouros
E durma, sem medo,
Na companhia de seus pregos
E de seus parafusos frouxos.

Clima
As manhãs enevoadas
Asseguram sol, natas no leite
E laranjas aguadas.
Não tem jeito:
O doce ócio será inapelavelmente desfeito.

Ilusão
A mosca pousou
Na pedra da pia.
A mão pousou na mosca e
Na pedra da pia.
Entre a pedra e a mosca,
A mão e a mosca,
Sobraram alguma mosca na mão
E a pedra num resto de qualquer coisa.

Literatura
Escrever seria represar pensamento e sensibilidade, indizíveis e inefáveis, em lago tomado de escapes. O escrito vazaria como a água. O poema nos escaparia a toda hora, um sonho condenado ao esquecimento. Ler o que seria então senão tapar os furos inumeráveis com os dez dedos da mão? Que a crítica ficasse com a engenharia reversa, desconhecendo como o texto foi projetado e construído. Restar-lhe-ia adivinhar ou imaginá-lo.


Existência
Embora seja uma simplificação, como é toda analogia, ou, como toda verbalização é (para ser extremado), experimento pensar a existência como um pêndulo cujos polos são o relacionar-se com o mundo e o “desrelacionar-se” dele. Uma possibilidade e uma impossibilidade. Relacionar-se é o que nos constitui; "desrelacionar-se” é o esvaziar-se até um “si” inefável. Uma miragem, um delírio, uma ilusão e um inapreensível. Por mais que a proximidade ao “si” pareça tangível, mais ele nos escapa. O pêndulo está bêbado. Por outro lado, relacionar-se é sempre uma probabilidade, mas nunca uma certeza. Relacionar-se com o mundo, no fundo, no fundo, não seria apenas relacionar-se consigo? O “si” como prisão da qual não se escapa? Por isso, em vão, ao dormir, o homem sonha. Algo foi perdido para sempre, mas não se sabe o quê. Resta a busca permanente no escuro de nós. E existir (constituir-se) é mesmo triste assim. Não cabe lamentar-se.




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