Velhice é interioridade que se amplia para o vazio. Uma idade muito avançada parece caracterizar-se pela penetração numa sala vazia cujas paredes são povoadas por sucessivas gavetas, nas quais estão recolhidos eventos remotos e medianamente antigos.
A vida interior do velho se dá pelo abrir aleatório de qualquer uma dessas gavetas e narrar, para si ou para interlocutor, o evento escolhido ou que escapou espontaneamente. Como o número de gavetas é limitado, as evocações tendem a repetir-se.
Nessa sala desprovida de móveis, objetos e pessoas, há unicamente o si no escuro silêncio das gavetas. O si de si assemelha-se a um pântano em que o velho está mergulhado, e estará progressivamente mais e mais afundado. A memória dos fatos recentes é muito rala; às vezes, desaparece, porque não existem recintos para armanezá-los.
A morte natural é um afundar-se definitivo no mais
íntimo de si, de onde não haverá retorno; de olhos abertos ou fechados;
acordado ou dormindo num sonho que não mais poderá ser lembrado ou narrado e,
assim, todas as gavetas estarão, para sempre, lacradas. O enterro ou a cremação
é a forma que os homens têm para demolir aquela sala das gavetas, para secar
aquele pântano dos mergulhos. Restará aos descendentes simulacro dos eventos
memoráveis, num arremedo de biografia oral, a maneira que o velho teve de não
desaparecer em sua sobrevida. O si de si é muito esperto.
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